A ronda da morte de Hélio Oiticica

Hélio Oiticica, esquema para o projeto do [draft for the project] <i>Parangolé-área: A ronda da morte</i> [The Death Watch], 1979
Hélio Oiticica, esquema para o projeto do [draft for the project] Parangolé-área: A ronda da morte [The Death Watch], 1979

Hélio Oiticica, artista formado no ambiente experimental do Rio de Janeiro da década de 1950, sempre buscou romper os limites das linguagens tradicionais para se aprofundar na experiência da arte como parte integrante da vida coletiva. Oiticica viveu em Nova York durante os anos documentados como os mais violentos do regime militar, aqueles que sucederam o Ato Institucional Nº 5 (AI-5) de dezembro de 1968. De volta ao Brasil em 1978, testemunhou a incompletude e as contradições da distensão “lenta, gradual e segura” da ditadura, prometida pelo então presidente, o general Ernesto Geisel. Em uma entrevista feita após seu retorno, o artista falou sobre a tristeza de perceber que já não poderia encontrar muitos dos amigos que havia feito em meados da década de 1960 no samba e nas favelas do Rio, atribuindo essas ausências ao aniquilamento sistemático de uma parcela da população por parte do Estado: “Sabe o que eu descobri? Que há um programa de genocídio, porque a maioria das pessoas que eu conhecia na Mangueira ou tão presas ou foram assassinadas”.

No ano seguinte, abalado pela brutal execução de mais um de seus amigos, Oiticica escreveu para a fotógrafa Martine Barrat uma carta em que descrevia um “parangolé-área” chamado A ronda da morte. No formato de uma tenda de circo negra, teria luzes estroboscópicas e música tocando em seu interior, um ambiente convidativo para que as pessoas pudessem entrar e dançar. Enquanto a festividade se desenrolasse no seu interior, o perímetro da tenda seria cercado por homens a cavalo, que dariam voltas em torno dessa área emulando uma ronda. A música no interior embalaria o risco iminente que estaria do lado de fora, alusão direta ao estado de vigilância e violência que persistia apesar da aparente normalização do cotidiano.

No contexto atual, em que notícias como as que abalaram Oiticica ainda se repetem com frequência alarmante no Brasil e no mundo, planejou-se realizar essa ação pela primeira vez como parte da programação da Bienal, que teria ocorrido ao longo de 2020. A Covid-19 impediu essa concretização, mas não diminuiu sua relevância. A ronda da morte, assim como a impossibilidade de realizá-la, segue sintetizando a perversidade da simulação de normalidade enquanto transcorrem genocídios e apontando para o modo como fluxos e dinâmicas históricas não se encerram dentro das periodizações que se encontram nos livros. Da mesma forma, obras que já haviam sido exibidas em Bienais passadas são reapresentadas agora, porque o presente mobiliza a oportunidade de revisitar o seu sentido original, ou mesmo de reelaborá-lo. O passado vive no presente, constituindo desafios e inspirando lutas que serão fundamentais para a construção do futuro.





  1. Caroline A. Jones, Eyesight Alone: Clement Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
  2. Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
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