A dedicatória de Constantin Brancusi

Constantin Brancusi. Dedicatória no catálogo da exposição na [Dedication on the catalog of the exhibition at the] Brummer Gallery, New York, 1926. Coleção [collection]: Pedro Corrêa do Lago
Constantin Brancusi. Dedicatória no catálogo da exposição na [Dedication on the catalog of the exhibition at the] Brummer Gallery, New York, 1926. Coleção [collection]: Pedro Corrêa do Lago

Em setembro de 1926, Constantin Brancusi desembarcava no porto de Nova York para a segunda exposição de suas obras nos Estados Unidos, acompanhado por Marcel Duchamp, curador da mostra. A chegada dos dois, e sobretudo das obras, tem contornos míticos e extrapola o âmbito da história da arte: as peças foram apreendidas pelos funcionários da aduana estadunidense, que se recusaram a catalogar as esculturas de Brancusi como obras de arte, principalmente um de seus icônicos Bird in Space [Pássaro no espaço], classificando-o na categoria “Utensílios de cozinha e instrumentos hospitalares”. O episódio deu início a um célebre processo legal, que se estenderia pelos dois anos seguintes e contaria com depoimentos de vários críticos e defensores da arte abstrata, levando finalmente o juiz J. Waite a declarar que “Sejamos simpáticos ou não a essas novas ideias e às escolas que as representam, pensamos que o fato de sua existência e influência no mundo da arte, conforme reconhecido pelos tribunais, deve ser considerado”, ratificando que a concepção de arte vigente ao longo de séculos havia mudado.

Poucos dias depois da chegada de Brancusi a Nova York, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, com quem o escultor travara amizade em Paris, casavam-se em São Paulo. Cabe imaginar a cena: sentado numa das caixas de madeira crua onde haviam viajado as esculturas, Brancusi recebe a notícia e, numa pausa da montagem da exposição, dedica um catálogo, que acabara de sair do prelo, aos noivos, a quem, contudo, repreende jocosamente pela maneira rude como deixaram Paris sem se despedir. Essa página amarelada, com uma dedicatória despretensiosa e afetuosa, condensa inúmeros círculos de correspondências, relações, trocas, idas e vindas, como a atração que Paris exercia sobre artistas de todo o mundo na década de 1920; a penetração da arte moderna nos Estados Unidos, que culminaria no deslocamento da centralidade parisiense para Nova York a partir dos anos 1940; a circulação cada vez mais massiva de obras de arte através de sua reprodução; e, por outro lado, as alianças e redes que artistas brasileiros alinhavaram com outros profissionais de um ambiente de vanguarda que se tornava irremediavelmente global.

No âmbito de uma exposição que foi se construindo a partir de inúmeros diálogos, trocas e discussões em e desde vários lugares do mundo, é essencial enfatizar como a arte pode estabelecer pontes entre contextos, momentos e cosmovisões distintas, e está sempre aberta a ser ressignificada pelas mudanças que o tempo e a história impõem. Nesse sentido, tanto este enunciado quanto as obras que o rodeiam, apontando para possíveis pontos de contato e fricção entre obras produzidas em contextos e períodos muito variados, servem como uma metonímia da 34ª Bienal, de seu desejo de estabelecer relações insuspeitas e iluminantes, sem abrir mão de preservar a opacidade de cada uma das obras.





  1. Caroline A. Jones, Eyesight Alone: Clement Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
  2. Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
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