Artistas
Um mês antes do lançamento de Quarto de despejo: diário de uma favelada, livro que teria mais de 100 mil exemplares vendidos apenas no ano de 1960, Carolina Maria de Jesus escreveu: “Eu sei que vou angariar inimigos, porque ninguém está habituado com este tipo de literatura”. O árduo cotidiano que ela narrava, em que um dia inteiro passado em busca de materiais recicláveis era quase sempre insuficiente para alimentar seus filhos, transformou-se graças ao sucesso comercial da publicação e ao interesse que ela atraiu de jornalistas, celebridades e políticos. A médio prazo, porém, sua literatura se provou demasiadamente desconcertante para seus leitores, como ela previa que aconteceria.
Nascida em Sacramento (Minas Gerais), Carolina viveu deslocamentos sucessivos até chegar à metrópole paulistana, onde começou a coletar cadernos, e, ao invés de vendê-los por quilo, utilizou- -os para experimentar a si mesma como escritora. Desde então, ela se via como uma autora que falaria diretamente da sua situação, de seus conflitos, revoltas e sonhos, mas que também poderia escrever poemas, peças teatrais, romances, provérbios e contos. Uma cidadã que almejava sair da favela para viver em casa de alvenaria e que gostaria de circular livremente pela “sala de visitas” da alta literatura. Para leitores progressistas, tais ambições apareceram como indícios de alienação, falta de consciência de classe e deslumbramento. Para os abertamente racistas, eram despropósitos que agravavam a ousadia de uma mulher negra e pobre que nunca nem deveria ter sido autorizada a publicar nada. E, para os mais distraídos, era um enigma sem precedentes que demandaria atenção para ser desvendado – uma atenção que o meio editorial e o público em geral não estavam dispostos a oferecer para Carolina.
A quantidade e diversidade de manuscritos inéditos guardados na cidade de Sacramento são o testemunho do violento silenciamento de sua voz literária complexa. A presença na 34ª Bienal de uma amostra deles – todos escritos após Quarto de despejo – enfatiza a importância de se olhar para além desse livro em que se tende a concentrar e reduzir a complexa figura de Carolina Maria de Jesus. Trata-se, também, de um convite para pensar, junto às obras aqui reunidas, sobre a mobilidade das histórias, das vidas e dos corpos – a qual pode se dar de modo conflituoso, mas que sinaliza a irrefreável necessidade de transformação.