O complexo imaginário peruano, caracterizado pelo choque entre a milenar cultura andina e as violências, idiossincrasias e contradições introduzidas e alimentadas pelos processos de colonização, constitui com frequência o ponto de partida do trabalho de Ximena Garrido-Lecca (1980, Lima, Peru). A variedade de técnicas e recursos utilizados pela artista, que incluem vídeos, instalações e esculturas, de certa forma reflete a impossibilidade de traduzir essa complexidade, de pasteurizar as fricções da realidade latino-americana numa obra pacificada ou linear. Nos últimos anos, Garrido-Lecca produziu também uma série de instalações caracterizadas pelo uso de processos de construção ou crescimento que podem ser acompanhados pelo público, resgatando técnicas e materiais empregados no artesanato, na arte e na arquitetura ao longo da história peruana.
Um de seus trabalhos mais emblemáticos, Insurgencias botánicas: Phaseolus Lunatus [Insurgências botânicas: Phaseolus Lunatus] (2017) é uma instalação com estrutura hidropônica em que são plantadas mudas de favas da espécie Phaseolus lunatus, numa reativação simbólica do suposto sistema de comunicação da cultura Moche, uma civilização peruana pré-incaica que desenvolveu complexos sistemas hidráulicos de irrigação e que, segundo teorias, valia-se das manchas presentes nessas favas como signos para uma escrita ideogramática. Através de obras como essa, Garrido-Lecca, ao abordar processos ou momentos específicos da história peruana dos últimos quinhentos anos, pinta um retrato único e poético das grandes transformações, das mudanças geográficas e sociais, das migrações internas e dos êxodos internacionais, assim como da perpetuação da dependência econômica dos países latino-americanos em relação a seus antigos colonizadores.
No âmbito específico da 34ª Bienal, Insurgencias botânicas adquiriu um significado ainda mais particular. A instalação foi mostrada pela primeira vez em fevereiro de 2020, na individual da artista que marcou a abertura da 34ª Bienal, e passou a simbolizar, com sua ênfase no processo ininterrupto de transformação de tudo que é vivo (de uma planta a uma cultura), a estratégia curatorial de conceber a mostra como processo e não como algo cristalizado ou fixo. Em novembro do mesmo ano, ela integrou a coletiva Vento, segunda etapa de construção pública da Bienal e momento de afirmação coletiva do desejo de resistir e seguir acreditando na arte e na cultura frente ao desespero trazido pela pandemia. Sua última apresentação será em setembro de 2021, sintetizando uma das estratégias curatoriais centrais da Bienal, baseada na convicção que mostrar as mesmas obras mais de uma vez, em contextos e momentos distintos, é enfatizar que nada permanece idêntico: nem uma obra de arte, nem quem olha para ela, nem o mundo ao redor.
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Caroline A. Jones, Eyesight Alone: Clement Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
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Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).