Correspondência #15

02 Feb 2021
Vista da cobertura do Pavilhão Ciccillo Matarazzo. São Paulo, 25/11/2019. © Leo Eloy / Estúdio Garagem / Fundação Bienal de São Paulo.

Ao longo do processo de construção da 34ª Bienal de São Paulo, sua equipe curatorial, artistas participantes e autores, através de cartas como esta, refletem direta e indiretamente sobre o desenvolvimento da exposição. Esta décima quinta correspondência foi escrita pela assistente de curadoria, Ana Roman.



Ruach pode significar, em hebraico, vento e alma. Em alguns casos, a palavra é usada para descrever complexas elaborações humanas, como as ciências humanas, chamadas de madaei haruach. A polissemia de ruach nos remete a uma antiga associação entre “sopro” e a existência humana individual e coletiva. O “sopro”, ou vento, seria responsável por animar e dar vida ao ser, que por meio dele se movimenta e se humaniza. 

Não tentaria, em uma breve carta, dar conta do debate filosófico sobre tal questão e, muito menos, de uma extensa genealogia das palavras que remetem a esse sopro vital. Faço aqui uma livre extrapolação a partir do hebraico: alma é também vento. A pulsão e o sopro do existir são também vento. Respirar é vento. 

Entre novembro e dezembro de 2020, Vento, mostra antecipatória da 34ª Bienal de São Paulo, ocupou o Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Ela foi concebida como uma mudança na trajetória da grande mostra coletiva, adiada para setembro de 2021. Em Vento, mergulhamos numa reflexão sobre a invisibilidade das coisas, sobre o espaço intransponível que existe entre elas e, mais ainda, sobre o intangível – elementos que têm marcado a nossa experiência social nos últimos meses. No trabalho de Joan Jonas, que intitula a exposição, os performers fazem uma coreografia em um dos dias mais frios de 1968, em uma praia de Long Island. O vento se impõe visivelmente como uma força externa aos corpos, definindo seus limites e coreografias. No entanto, também está presente como uma força interna: o vento é um elemento vital. Ele seria esse gesto tão simples e involuntário, responsável pela vida e pelo movimento.

Nos últimos dias, as imagens e relatos que chegam de Manaus nos levaram novamente a refletir sobre a maneira pela qual nos relacionamos com nossa respiração. Em 2014, com o assassinato de Eric Garner, houve o primeiro eco de ''eu não consigo respirar", frase repetida por George Floyd Jr. ao ser também cruelmente assassinado em 2020. Esses acontecimentos somam-se a muitos outros, nos quais certas vidas humanas parecem ter menos valor do que outras. Eles nos remetem a uma assimetria na nossa possibilidade de respirar e na impossibilidade de compartilharmos a mesma humanidade. Aquilo que é dado como natural e essencial – a respiração – é mediado por relações de poder, que refletem os mais cruéis aspectos da violência e da colonialidade. Não partilhamos igualmente o vento e não temos o mesmo direito à respiração. 

Nos últimos meses, chegamos a importantes reflexões sobre a humanidade diante da pandemia de Covid-19, e construímos um arcabouço discursivo e teórico que parte de generalizações sobre o sujeito, sua perda de experiência temporal e espacial, e sobre a fragilidade humana diante da ameaça do vírus. No entanto, as duras imagens que nos chegam recolocam a importância de refletirmos sobre o regime de distribuição do nosso vento. Ao silenciarmos sobre as desigualdades sociais, raciais e de gênero que marcam tal distribuição, somos quase testemunhas dos complexos mecanismos de exercício do biopoder e da realização necropolítica.

Neste cenário, marcado pela violência e pela crueldade, é importante assumirmos responsabilidade pela situação que se coloca diante de nós. Uma mudança de mundo e dos regimes de partilha do vento virá de mudanças políticas. No entanto, para uma mudança radical e necessária, devemos tentar fabular e imaginar outros possíveis futuros. 

Nos últimos tempos, li uma interessante narrativa de Donna Haraway, intitulada “The Camille Stories: Children of Compost” [As histórias de Camille: filhos da compostagem].¹ A autora descreve um cenário de destruição da Terra no chamado Capitaloceno, período marcado por guerras, extinções em massa e genocídio multiespécie produzidos pela ação humana. São temas que, mesmo oriundos da ficção, não são alheios à nossa realidade. Para a salvação do planeta, as comunidades interespécies se articulam com base em uma proposta de parentesco diversa, que vai se responsabilizar pela manutenção e reprodução da vida.

O texto evoca uma nova cosmogonia e a superação do caos planetário é alcançada por uma lógica não patriarcal e não antropocêntrica. A radical proposta da ficção pode ser entendida como uma outra estrutura de respiração. Um diferente entendimento de alma e de sua relação com o vento que a circunda. A própria ideia de ficção, em nosso contexto de desesperança, é um respiro que anima novas possibilidades. Diante da realidade que se impõe, imaginar outros ventos, outras relações e outras condições de vida já é, em si, um desafio.  



¹ HARAWAY, Donna J. “The Camille Stories: Children of Compost”. In: Donna J.  Haraway, Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Duke University Press, 2016.

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