Correspondência #22

13 Dec 2021
Vista da instalação nós aqui, entre o céu e a terra (2021), de Eleonora Fabião, na 34ª Bienal de São Paulo. Comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo para a 34ª Bienal. © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Ao longo do processo de construção da 34ª Bienal de São Paulo, sua equipe curatorial, artistas participantes e autores, através de cartas como esta, refletiram direta e indiretamente sobre o desenvolvimento da exposição. Esta vigésima segunda e última correspondência foi escrita por Jacopo Crivelli Visconti, curador geral da 34ª Bienal de São Paulo. 

Houve momentos em que duvidamos que seria possível, mas chegamos ao fim. Não foi fácil. Para ninguém. Para todos nós que fizemos a 34ª Bienal, de maneira geral, foi mais fácil que para muitos outros. Mesmo assim, nos custou muito. E valeu a pena. 

Valeu a pena porque sem esse processo todo talvez a gente não chegasse a ter uma sensação tão nítida de que ver e estar com arte muda profundamente a vida das pessoas. Quando começamos a escrever a série de correspondências que se encerra aqui, o intuito era falar do processo de concepção e construção da Bienal num registro pessoal, íntimo. As cartas foram saindo de várias maneiras; cada um dos que escreveram tem seu tom e sua maneira de se expressar. Nenhuma das que escrevi até hoje foi tão pessoal como esta. Porque mudei, não sou a mesma pessoa que era três anos atrás. Não mesmo.

Édouard Glissant disse uma e outra vez que ninguém é o mesmo o tempo todo, que estamos sempre nos transformando, e não há nada de errado nisso. É o tremor que sentimos ao entrar em contato com o mundo, com os outros, que nos transforma. Sempre achei essa visão maravilhosa, mas nunca havia sentido quão profunda e certa ela é como agora. Porque mudei. Mudei ao ouvir o amigo e mestre Jaider Esbell contar seus sonhos no pavilhão vazio, numa noite de fim de novembro, pouco mais de um ano atrás. Mudei ao percorrer o mesmo pavilhão durante Vento, que certamente foi e será a mais excepcional das exposições que eu contribuí a fazer acontecer. Mudei ao escutar as pessoas extraordinárias que Vânia Medeiros e Beatriz Cruz convidaram para ativar com suas conversas a obra deposição, e ao fazer e refazer o exercício de caminhar na roda de negociação e observar a Bienal a partir dela. Mudei ao ver gente chorar na frente dos tantos retratos de Frederick Douglass um ao lado do outro. Mudei ao ver fragmentos de meteoritos separados há décadas de repente reunidos, dormindo juntos no pavilhão escuro e silencioso. Mudei ao ver Neo Muyanga abrir a Bienal em fevereiro do ano passado, e encerrá-la, novamente com o Coletivo Legítima Defesa, há apenas uma semana, num ritual de agradecimento, resistência, luto e esperança.

Aqueles que receberam essas cartas me viram citar mais de uma vez a frase de Alan Badiou: “podemos continuar”. Há uma beleza sólida, imprescindível na resiliência que nos fez, e ainda nos faz, continuar. É a força da luta de quem não tem outra saída a não ser lutar mesmo, mas também de quem luta ou age por escolha, na convicção de que as coisas têm que melhorar para todos antes de poderem ficar boas para qualquer um. Acredito nisso, acreditei nisso esses meses todos. É o que me fez continuar. Mas não quero mais resistir, segurar a respiração debaixo da água, aguentar. É chegada a hora de emergir, respirar e seguir em frente. Agora que, aparentemente, chegamos ao fim, sinto que está na hora de começar.  

No dia em que a 34ª Bienal abriu para o público, já de noite, recebi uma mensagem que dizia: estamos só começando. Obviamente havia um contexto para a frase. Sempre há um contexto, e se tem algo que defendemos nessa Bienal é que o contexto define de fato como entendemos as coisas, se é que as entendemos. Mas quanto mais ela ecoa na minha cabeça (e tem ecoado muito), mais me parece também ser uma frase que vai além de qualquer contexto, que reverbera, que não acaba, porque é bonito pensar que estamos começando, que estamos sempre só (re-)começando. Para mim, e talvez para qualquer um que trabalhe pensando e fazendo exposições, o dia da inauguração tem mais gosto de conclusão do que de início. Sempre tenho a sensação de que as coisas acontecem mesmo durante a montagem, quando nada é ainda cristalizado ou acabado, quando falamos entre nós (curadores, artistas, produtores, montadores, iluminadores, designers...), falamos com as obras e elas falam com a gente. Pensar que a inauguração pode ser realmente o início, que é nesse momento que de fato começamos, por muito óbvio que isso possa parecer para quem visita uma exposição, para mim é uma ideia quase revolucionária. 

E mais revolucionário ainda é pensar que estamos só começando bem agora que a Bienal terminou. Mesmo gigante, uma exposição pode ser uma semente. Pode ser, em termos aristotélicos, mais potência do que ato, e o que está em potência me parece sempre muito mais belo e instigante do que aquilo que está plenamente realizado. O nosso desejo de fazer da exposição um ensaio aberto, de certa forma, tinha a ver com isso, com a vontade de seguir começando, seguir em potência, seguir arriscando, seguir com frio na barriga. Seguir sem saber, de fato, o que está por vir. A emoção de pensar, organizar e visitar uma exposição nasce muitas vezes do entendimento de que ela é parte do mundo. E o desejo de ser permeável ao mundo foi o ponto de partida da 34ª Bienal, o que lhe conferiu uma pertinência que não imaginávamos, que não podíamos prever. Porque o mundo está sempre começando, sempre se revelando como algo que não podemos apreender, que ultrapassa o que esperávamos e o que podemos compreender. 

Fiquem bem, foi uma viagem e tanto, mas estamos só começando, seja lá o que for.

* Uma Bienal é um trabalho imenso, autenticamente coletivo. A pequena parte dela que me cabe é para Lu.

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