Correspondência #21

09 Sep 2021
Vista do citrino na 34ª Bienal de São Paulo. © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Ao longo do processo de construção da 34ª Bienal de São Paulo, sua equipe curatorial, artistas participantes e autores, através de cartas como esta, refletem direta e indiretamente sobre o desenvolvimento da exposição. Esta vigésima primeira correspondência foi escrita por Jacopo Crivelli Visconti, curador geral da 34ª Bienal de São Paulo. 



Imaginar não é apenas olhar, ou olhar para; também não é se colocar integralmente no outro. É, para todos os fins, tornar-se.1
Toni Morrison

Foram mais de vinte cartas. Foram mais de vinte meses. Meses longos e duros. Meses de silêncio, luto e solidão. Meses em que muitas coisas mudaram, a maioria delas para pior. Seguimos aqui. Acreditando que tudo o que aconteceu não torna o que fazemos menos importante. Pelo contrário, torna-o mais importante, porque seguir adiante apesar de tudo é o gesto mais corajoso neste momento. Seguir adiante na luta, mas também na defesa de espaços para o sorriso, o prazer, a arte, a poesia e o canto. Esperando que a alegria ajude a lutar, que a ternura ajude a resistir. Que seja possível assim encurtar o tempo, até tudo ficar melhor. Melhor mesmo. Não melhor de novo: melhor pela primeira vez. Melhor, finalmente, para todos. Porque, como disse alguma vez Fred Moten, parafraseando Fred Hampton, “a aliança resulta do reconhecimento de que tudo está ferrado pra você, da mesma forma que já reconhecemos que está ferrado pra nós. Não preciso da sua ajuda. Só preciso que você reconheça que essa merda também está te matando, ainda que mais suavemente, seu filho da puta, está entendendo?”2

O anteprojeto da 34ª Bienal, escrito faz já quase três anos, começava afirmando

a ideia de uma exposição que vai se construindo aos poucos, e nesse processo aberto expõe também seu funcionamento e suas premissas conceituais, se apoia na noção de ensaio [...] e permite pensar a exposição como um processo, um espaço onde as coisas se apresentam sem a ambição de ser definitivas e cristalizadas, amplificando a consciência de que é necessário um exercício de tentativas e repetições até que as obras entrem num estado de afinação e soem em uníssono. É essa afinação que será buscada na exposição, e é por isso que se propõe para ela um tempo expandido e uma poética da repetição e da tentativa.

Ao longo dos meses seguintes, a noção de um ensaio aberto e prolongado, intenso e espaçado, foi se tornando clara ao passo que se fazia também pública. E o tempo dilatado que havíamos imaginado para a Bienal se tornou muito mais do que uma ferramenta curatorial: se tornou parte da vida de cada um.

Em suas últimas entrevistas, Christian Boltanski costumava falar dos templos japoneses, e mais especificamente da maneira como eles representariam uma visão de mundo radicalmente distinta da ocidental, por privilegiar e atribuir valor ao conhecimento e às ideias, e não ao objeto. O telhado, o piso, as janelas: toda e qualquer parte pode ser substituída, se isso for necessário, sem que essa substituição altere o valor que se atribui ao todo.O templo descrito por Boltanski lembra a nave Argo imaginada por Roland Barthes, “cujas peças os Argonautas substituíam pouco a pouco, de modo que acabaram por ter uma nave inteiramente nova, sem precisar mudar-lhe o nome nem a forma”.4 Poderia parecer a mesma história, mas as conclusões são opostas: para Barthes, apesar de manter o nome e a forma, a nave é nova; para Boltanski, apesar de ser feito de peças novas, o templo é antigo. O que de fato importa não é estabelecer o que é novo e o que é antigo, é entender que se algo que se transformou e segue transformando-se pode ser chamado pelo mesmo nome é porque o que o define é a própria transformação, e não o que se opõe a ela.

Durante o incêndio do Museu Nacional, em 2 de setembro de 2018, uma ametista (variedade violeta de quartzo) se transformou em citrino (variedade amarela de quartzo). Esse processo de transformação não é raro, mas é demorado, e atesta que a temperatura no museu deve ter ficado ao redor dos 450 graus por várias horas. Ao absorver indelevelmente o calor, a rocha tornou-se um indício, e sua cor, uma testemunha do que aconteceu. Transformou-se, mas é a mesma rocha. Continua sendo a mesma rocha porque soube transformar-se. A Bienal que inaugurou, finalmente, na semana passada, mantém o nome e é, de fato, a mesma exposição, porque é outra da que foi concebida inicialmente, porque manteve vivo o desejo de continuar aberta e permeável, de deixar que tudo que a rodeia possa transformá-la incessantemente, influenciando diretamente tanto a maneira como é percebida, quanto, antes disso, a maneira como é concebida ou imaginada.

O próprio ato de imaginar, aliás, é inseparável da ideia de uma transformação. Na frase citada acima, Toni Morrison se referia essencialmente ao âmbito literário, mas a ideia de uma imaginação que pressupõe a mudança é universal, e pode se aplicar também, perfeitamente, ao contexto de uma exposição, de uma apresentação musical, de uma peça teatral. Segundo Augusto Boal, “só os maus dramaturgos de todas as épocas não compreendem a enorme importância das transformações ocorridas diante do espectador: teatro é transformação, movimento, e não simples apresentação do que existe. É tornar-se e não ser”.5 Coerentemente com essa visão, Boal concebeu nos anos 1960 o que chamou de sistema “coringa”, no qual cada personagem era interpretado por vários atores ao longo da peça. Ao enfatizar, entre outras coisas, a maneira como a multiplicidade pode representar de maneira mais fiel do que a unicidade, buscava-se também “apresentar, dentro do próprio espetáculo, a peça e sua análise”.Falar, por exemplo, de Tiradentes e da maneira como o Teatro de Arena, num determinado momento histórico e com determinadas limitações, necessidades e ambições, representa Tiradentes.

A maneira como a 34ª Bienal foi concebida ecoa uma premissa análoga: o desejo de apresentar as obras e os artistas, mas também o processo de construção da própria exposição. Por isso o esforço, constante e constantemente reformulado, de pensar e repensar a exposição publicamente, de não deixar de falar do que havíamos planejado, do que seguiu conforme o plano e do que se transformou, do que se tornou outra coisa. Para que possa ficar ainda mais claro que ela não é separada do mundo, mas é parte dele.

Foram meses longos e duros. A 34ª Bienal está aberta. O trabalho continua.

P.S.
Foi, e continua sendo, um trabalho coletivo, e nada teria acontecido sem a dedicação e o esforço de tantas, inúmeras pessoas. A todas elas, publica e irrestritamente: muito obrigado!



1 “Imagining is not merely looking or looking at; nor is it taking oneself intact into the other. It is, for the purposes of the work, becoming.” Toni Morrison, “Black Matters”, in Playing in the Dark: Whiteness and the Literary Imagination. Nova York: Vintage Books, 1992, p. 4. Tradução nossa.
2 “[...] the coalition emerges out of your recognition that it’s fucked up for you, in the same way that we’ve already recognized that it’s fucked up for us. I don’t need your help. I just need you to recognize that this shit is killing you, too, however much more softly, you stupid motherfucker, you know?”. Stefano Harney & Fred Moten, The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study. New York: Minor Composition, 2013, p. 140. Tradução nossa.
3 Ver, por exemplo, https://www.mariangoodman.com/interview-christian-boltanski-at-galerie-marian-goodman/
Roland Barthes, in Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 52.
Augusto Boal, Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988 (5ª edição), p. 43.
Ibid., p. 207.

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