Entrevista com o pesquisador Paulo Tavares realizada para a publicação educativa da 34ª Bienal

Identificação de Bö'u, o antigo centro de Marãiwatsédé, no atual estado de Mato Grosso. Foto e cortesia de Paulo Tavares

O arquiteto e professor Paulo Tavares (UnB) conversou com a equipe da Bienal sobre as origens do conceito de design na modernidade ocidental e sobre a noção de "design para além do humano", uma alternativa conceitual baseada no pensamento e nas práticas ancestrais de sociedades ameríndias amazônicas, a cuja pesquisa Tavares tem se dedicado. A entrevista é uma introdução ao texto "Nas ruínas da floresta", incluído na publicação educativa da 34ª Bienal. Baixe o pdf aqui ou leia a entrevista na íntegra abaixo. 



1- No texto você defende que a noção de design herdada da modernidade ocidental deve ser transformada no sentido de se aproximar de práticas mais abrangentes, envolvendo sujeitos humanos e não-humanos, como as que se notam em povos ameríndios. Primeiro, gostaríamos que você apresentasse brevemente o que é design (ou a noção de design que você trabalha no texto), pensando que nosso público talvez não esteja familiarizado com essa discussão. Segundo, gostaríamos que você comentasse como foi o seu caminho de pesquisa para chegar à ideia de que os saberes tradicionais ameríndios, a organização social e espacial dessas sociedades, apontam um caminho para transformar a noção de design herdada da modernidade.

2- Você vê a aliança entre conhecimento científico e conhecimento indígena como um caminho de resistência, hoje, contra a devastação/destruição da biodiversidade dos ecossistemas brasileiros pela ação humana? Se sim, poderia mencionar alguns exemplos de projetos que tenham proposto tais associações?


Sendo bem sucinto, o conceito de design é um desdobramento da Revolução Industrial do século 19, quando o mundo se defronta com uma proliferação de objetos, de aparatos e de instrumentos e começa a se formar um conhecimento sobre o estudo desses objetos, tanto do ponto de vista da funcionalidade, como do ponto de vista da sua beleza, da sua estética. Ao longo do século 20, isso se desdobra e evolui até que o design acaba por se consolidar como uma disciplina, um campo específico do conhecimento, focado justamente no desenho desses objetos, aparelhos, instrumentos. Mais recentemente, no pós-segunda guerra mundial, ou mesmo no que a gente poderia chamar de século 20 tardio, o design assume uma abrangência muito maior e muito mais complexa como termo, a ponto de podermos afirmar que tudo no mundo, toda essa grande constelação de objetos e de mídias existentes hoje, tanto objetos virtuais quanto objetos reais, são de alguma maneira produtos do design. Design é quase uma palavra onipresente no nosso vocabulário, desde design de instituições, design gráfico, design de objetos, design de exposição, design thinking, design digital... enfim, a palavra design se tornou quase um mantra da sociedade tanto industrial como pós-industrial. Essa é uma categoria histórica de design. Mas tem uma outra perspectiva, que é a que eu trabalho mais no texto, e que pensa o design como um conceito que define o que é o humano, aquilo que é a espécie humana, no seguinte sentido: o que nos diferencia do mundo ao nosso redor, do mundo não-humano, é justamente uma capacidade de agência, uma capacidade de intencionalidade, uma capacidade de transformação, de ação com um propósito, com objetivos, com racionalidade, com planejamento. Uma capacidade de transformar esse mundo para que ele se adeque a um objetivo que nós temos, para adaptar esse mundo à nossa vontade, aos nossos desejos, aos nossos propósitos, às nossas intencionalidades. Nesse aspecto, o design aparece quase como uma categoria de definição do humano, porque justamente aqueles que não são humanos, todas essas entidades com as quais convivemos, não teriam esses atributos que são definidores da condição humana, da condição de humanidade, que são intencionalidade, propósito, agência, capacidade de planejamento, enfim, capacidade de design, de antecipar, desenhar e projetar algo, justamente porque os humanos e só os humanos é que seriam dotados dessa racionalidade específica. Esse é um conceito ocidental de design que deriva de um conceito ocidental do que é humanidade, do que é humano, do que é o âmbito da cultura. Quando eu estava começando a pesquisar a Amazônia, justamente para entender a dimensão colonial do design modernista naquela região, ou seja, como os programas de modernização do território estavam muito relacionados a práticas de planejamento, de planificação, de desenho arquitetônico, de design, de maneira geral – poderíamos até dizer design territorial –, esses programas deveriam ser olhados não como produtos da modernidade, mas na verdade como instrumentos da colonização desses territórios habitados pelos povos originários da Ameríndia. E o design era uma força colonial. Ao fazer essa investigação, eu comecei a tentar entender como esses povos desenhavam seus espaços, como eles concebiam a relação deles com a paisagem, com a terra mesmo. E o que se percebe é que para aquele conceito de design ocidental emergir, era preciso um conceito do que não era desenhado, do “não design”. E essa figura do “não design” vai ser justamente a floresta, que era uma coisa completamente natural, intocada pelos homens. Para existir esse conceito de que o homem é aquele que transforma, era preciso alguma coisa que não era transformada, e isso seria por excelência o espaço da floresta. Por isso as populações ameríndias eram consideradas um humano que estava na fronteira com a animalidade, um ser “primitivo”. E uma das caracterizações dessa condição de “primitividade” é que eles não haviam transformado o seu meio ambiente. Ou seja, eles não haviam criado instrumentos, tecnologias, formas de pensamento, formas de design, que teriam alterado o ambiente da floresta.

Temos aqui os dois pólos que definem esse conceito de design enquanto atributo humano e caracteriza até um sentido evolutivo da humanidade. Se tomarmos os estudos que estão sendo feitos hoje, reconheceremos que esses espaços que a visão moderna colonial criada no ocidente chamava de natureza, sem ter nenhuma interação ou intenção humana, na verdade são ambientes ou paisagens completamente antropogênicas. Ou seja, modificadas pelas populações indígenas, modificadas por essas culturas. Isso significa dizer que encontramos uma forma de design aí. Só que essa forma de design não é a mesma concebida pelo ocidente, ou ao menos é uma forma de design mais abrangente. E é mais abrangente porque, como nos mostram vários estudos etnográficos e antropológicos, a maioria das populações autóctones da América – mas na verdade não apenas elas, pois poderíamos dizer a maioria do mundo não ocidental – vai atribuir certo nível de agência para os não humanos. Essas populações entendem que os animais, as plantas, esse mundo não humano com o qual a gente convive e no qual a gente vive, é dotado de agência e de intencionalidade. Esse mundo não humano é dotado de uma série de atributos que os ocidentais utilizam para definir o humano como uma espécie exclusiva: agência, intencionalidade, propósito, concepção de instrumentos e até mesmo concepção ou desenvolvimento de linguagens. Essa característica que os povos ameríndios identificam nesse mundo não humano é cada vez mais descoberta, através da ciência, como um fato científico, como um fato real. Então, há aqui um encontro entre a ciência mais sofisticada contemporânea e o pensamento ameríndio, a filosofia política indígena, dizendo que esse mundo não humano não é um mundo inerte, não é um mundo morto, não é um mundo passivo, não é um mundo que pode ser apenas objetificado. Na verdade, ele é um mundo ativo, um mundo agente, um mundo que carrega a sua própria intencionalidade, onde existem formas específicas de linguagem, de comunicação, que portanto, se quisermos pensar a categoria do design, é preciso inventar um termo para pensar o design além do humano, que compreenda que essas outras formas de vida também têm agência em transformar o mundo. É claro que essa é uma ideia ambiciosa, mas é uma ideia necessária para os nossos dias. Além do humano nós podemos pensar em um conceito de design cuja definição não é baseada no ato de um indivíduo soberano que impõe a forma sobre um ambiente inerte e passivo de objetos, mas sim uma forma de design que é muito mais distribuída, muito mais em rede, muito mais coletiva, e na qual diferentes forças e seres participam desse processo de design com diferentes graus de agência. Participam dando forma e sendo formados pelos ambientes dentro dos quais essas forças e seres coexistem. Ou seja, podemos pensar que a noção de design não deveria estar situada no indivíduo humano, mas que ela é um processo muito mais coletivo, no sentido de que ele envolve entidades tanto humanas como não humanas, em uma espécie de relação de reciprocidade, solidariedade, colaboração, eventualmente até conflito, em que o desenho ou transformação do mundo não é uma imposição de um ser racional, soberano, todo poderoso, que pode modificar o mundo à sua vontade, mas na verdade é um processo muito mais distribuído e coletivo, com outras formas de agências e agentes. Isso implica conceber a forma de desenhar os espaços e desenhar a paisagem de uma maneira radicalmente diferente, em que o design não impõe uma forma sobre a matéria, mas é uma maneira de negociar, de mediar diferentes agências desses seres no mundo.

No final da sua fala, você parece indicar que um caminho para reinventar a noção de design pode ser aprender com o modo como os povos indígenas modificam seu ambiente se integrando a uma rede política de negociação contínua com outros seres, com seres não humanos, o que nos leva à segunda pergunta. Como aprender e criar alianças com esses outros saberes?

Fazendo uma ponte entre a primeira e a segunda pergunta, uma maneira de entender a diferença entre o design ocidental e o design ameríndio, é analisar como a agricultura foi realizada nesses dois mundos. Na agricultura ocidental encontra-se uma área de floresta e derruba-se aquela floresta para cultivar um tipo de alimento e transformar radicalmente aquela paisagem, no sentido de que ela cada vez mais vai se tornar uma paisagem homogênea, uma paisagem onde a dicotomia entre o cultivado e o natural é muito clara, muito específica. A manifestação limite disso são as grandes plantações de soja industriais atuais, por exemplo, onde há uma paisagem com uma diversidade muito baixa e uma homogeneidade muito alta. Onde você vê claramente que há uma imposição de uma racionalidade de desenho sobre aquela paisagem, pela sua própria geometria, pela sua própria cor, geralmente todas quadriculadas. Se a gente for pensar nos sistemas tradicionais ameríndios, que hoje as pessoas chamam de agroflorestais, existe uma outra concepção do design ali.¹ Não existe uma imposição de uma forma geométrica, racional, completamente acabada sobre o ambiente, mas existe uma vontade de trabalhar com certas forças do ambiente, e apenas direcioná-las, modificá-las aqui e ali, ajustá-las, potencializá-las. De maneira que aquele lugar que era uma floresta se torna cada vez mais uma floresta com maior biodiversidade. Porque cultivam-se certos alimentos, depois abandona-se aquele lugar e ali vão crescer outras espécies de alimentos, ou seja, aquela floresta vai se tornar um espaço cultivado, uma espécie de jardim. Esses dois elementos mostram bem essa diferença entre um design que é impositivo, de uma transformação radical e impositiva na paisagem, e outro que trabalha com as próprias forças e agências desses elementos na paisagem, potencializando a sua própria capacidade, o seu próprio modo de existir no mundo. O sistema agroflorestal dos povos ameríndios, em comparação com o sistema agricultural que nasce da [modernidade] é muito interessante para se observar essa diferença de design. E a agrofloresta é um desses exemplos que se pode ver de alianças ou como vocês falaram, o que a gente pode aprender com o conhecimento, com os conceitos, com a filosofia política, com as ciências dos povos ameríndios, que é a segunda pergunta que vocês fazem.

Eu acho que de cara é importante dizer que todo conhecimento científico moderno, principalmente nas ciências naturais, de alguma maneira está em débito com conhecimentos de povos indígenas ao redor do mundo. Podem-se encontrar vários exemplos de como a ciência evoluiu no mundo ocidental, no século 18, no século 19, e verificar que existe sempre um elemento de conhecimento dos povos indígenas que de alguma maneira foi incorporado, ou até se poderia dizer expropriado desses povos, e que influenciou o pensamento ocidental e a ciência moderna ocidental. Tome-se, por exemplo, a botânica, que é uma ciência fundamental para o processo de colonização e que nasce no processo de colonização. É muito claro, na botânica moderna, que todo um universo de utilização dessas plantas está muito baseado em conhecimentos indígenas: da classificação de plantas, do entendimento de para quê as plantas funcionam, qual é a utilidade delas, se elas são plantas medicinais, se são plantas comestíveis, se têm alguma propriedade analgésica, ou profilática, se elas têm propriedades de resistência para ser usadas nas arquiteturas. Esses exploradores europeus iam para esses territórios, identificavam, conversavam, tinham relações com essas pessoas, apropriavam-se desses conhecimentos e levavam para transformá-los em um conhecimento científico europeu. Bom, isso acontece até hoje com o processo de biotecnologia, com empresas vindo para a Amazônia, extraindo conhecimentos indígenas e patenteando-os no primeiro mundo. Enfim, é importante dizer que essa aliança sempre esteve presente, de modo que o conhecimento dos povos ameríndios foi muito influente para a ciência moderna. O que houve foi um processo de apagamento, de silenciamento, de velamento, de exclusão desse conhecimento.Ou de classificação desse conhecimento como primitivo, como não científico, como não racional, tentando negá-lo como conhecimento científico. E a ciência moderna ocidental, ela vai se erguer desse pilar, negando esse conhecimento do qual ela toma para se constituir. Essa relação, de alguma maneira, principalmente depois da virada ecológica nos anos 1980 e 1990, foi se transformando radicalmente. Há um processo de descolonização do pensamento científico, em que os cientistas começam a questionar os seus próprios postulados. Isso vai acontecer em diversos meios, desde a filosofia, até as artes, vai passar pelas ciências duras, pelos conhecimentos científicos, em uma espécie de percepção de que o conhecimento dos povos indígenas, tudo aquilo que era que era considerado não-científico, que era considerado primitivo, não-racional, etc., na verdade tinha um componente fundamental e muito contemporâneo, que a ciência vai encontrar hoje em dia. Para dar um exemplo mais pragmático disso, para ficar claro: nós sabemos, através de estudos etnográficos, antropológicos, que os povos indígenas dão certa agência, ou consideram que o mundo não humano, o mundo animal e o mundo vegetal, são entidades com espírito, são entidades que têm agência no mundo, têm intencionalidade, ou seja, que eles não são objetos, que eles são, de alguma maneira, sujeitos. E hoje vemos a ciência mais contemporânea falando que as florestas são grandes redes de comunicação, que as árvores se comunicam entre si, que as árvores conversam entre si, que na verdade elas têm um tipo de linguagem. Que golfinhos, por exemplo, desenvolveram ao longo do tempo um tipo de comunicação específica entre eles, que eles têm uma linguagem, ou seja, que eles têm algum nível de subjetividade, que eles são de alguma maneira uma espécie de sujeito. Ou seja, há um encontro entre o pensamento não-ocidental e a ciência mais sofisticada. E esse encontro se dá em um momento muito crítico, especialmente em relação ao contexto ecológico, climático, global, em que cada vez mais a ciência, o conhecimento tecnológico-científico moderno, a tecnociência moderna se dá conta que a sua relação com o mundo é destrutiva, é uma relação predatória com o mundo. E que ela tem que, de alguma maneira, buscar alternativas para reorientar essa relação. Tanto a tecnologia quanto a ciência. Esse encontro com o pensamento ameríndio vai se dar nesse contexto, como uma espécie de inspiração para estabelecer relações com o mundo não humano que não sejam tão predatórias, que não sejam tão destrutivas, que não sejam tão violentas. Essa ideia de que a floresta é um ser vivente, um ser comunicativo, pode-se encontrar, por exemplo, num povo como o Sarayaku, da Amazônia do Equador. Eles vão falar que a floresta é um ser vivente, que a floresta é um ser ativo. Nós podemos ver isso também no âmbito legal, por exemplo, com a adoção, por várias cortes e fóruns mundiais, da ideia de que a natureza tem que ser um sujeito de direitos. Ou seja, que a natureza, assim como os homens, tem que ter direitos fundamentais. Assim como os homens têm direitos fundamentais, a natureza é um ser vivo, vivente, que precisa de direitos. Isso é uma concepção fundamentalmente não-ocidental do mundo que acaba por entrar, digamos assim, no campo jurídico ocidental. Existe esse aspecto, digamos, mais conceitual, e existe um aspecto muito pragmático dessa aliança, um aspecto muito concreto, que são esses povos que estão protegendo o mundo natural, o mundo não humano de uma destruição, de uma extinção praticamente absoluta e completa, causada pelo desenvolvimento tecnocientífico moderno. Se observarmos pragmaticamente onde existe mais floresta hoje é nos territórios onde os povos indígenas vivem. E isso está muito diretamente relacionado com as formas de conhecimento desses povos. Está muito diretamente relacionado ao tipo de design que eles cultivam. Muito diretamente relacionado às práticas culturais, simbólicas e às práticas espaciais desses povos. Ao mesmo tempo, esses povos se encontram numa situação de fragilidade muito grande, numa situação de risco muito grande. Então é possível que se forje uma aliança entre setores mais poderosos da sociedade, as pessoas que estão em situações de poder, com esses povos, para preservar essas formas de conhecimento, para cultivar, potencializar essas formas de conhecimento e colaborar para que essas formas continuem vivas. Então, a ideia de uma aliança entre conhecimento científico e conhecimento indígena, entre formas de organização política ocidental, do ponto de vista, digamos, dos direitos civis e formas indígenas de manutenção e de preservação da terra, esse tipo de aliança é talvez onde está uma das vanguardas da luta política hoje.



¹ Recentemente, o Iphan considerou o sistema agroflorestal do Alto do Rio Negro como um patrimônio brasileiro.

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