Correspondência #4

14 Apr 2020

Ao longo do ano de 2020, através de cartas como esta, o corpo curatorial da 34ª Bienal de São Paulo torna públicas reflexões sobre a construção da mostra. Esta quarta carta foi escrita por Ruth Estévez.

"Eu olhei para ele, que mirava o meu rosto"¹

Há alguns meses, decidimos escrever uma série de cartas abertas ao público, para compartilhar nossas reflexões sobre o desenvolvimento da Bienal de São Paulo. Tratava-se de uma correspondência que combinava nossas próprias ficções com relatos do passado, situações oficiais e reimaginadas, influenciadas, sem sombra de dúvida, pelos acontecimentos diários.

Terminei minha carta algumas semanas depois de ter viajado a Santiago do Chile em 18 de outubro de 2019, para dar uma palestra no contexto de uma outra Bienal. Quis o destino que minha acomodação se localizasse num sexto andar em plena Plaza Italia, bem em meio aos protestos civis que começavam aqueles dias, em consequência do aumento dos preços do transporte e de outros produtos básicos. Uma crise que vinha se cozinhando em fogo lento desde muito tempo antes, e que já havia tido seus surtos nas revoltas estudantis de 2011. Muitos cidadãos, fartos, saíram às ruas reivindicando justiça social e a renúncia de um governo direitista que encenava o colapso com indiferença. Um país que havia camuflado a realidade detrás de uma suposta bonança econômica edificada em um “oásis” fictício que, além do mais, pretendia ser exemplo para o resto da América Latina.

Em resposta à situação, o governo não tardou em colocar o exército nas ruas. Fiquei arrepiada quando o vi percorrer as avenidas de Santiago, com aqueles tanques que despertavam da letargia. A cidade, sonâmbula e contida durante a noite, explodia com as primeiras luzes do dia. Imposto o toque de recolher, a maioria optou por não sair e alguns aceitaram o desafio, carentes, talvez, de uma memória vivencial cultivada no contexto da repressão e do medo. Por uma feliz coincidência, as insurreições civis ocorreram em vários lugares do país, e paralelamente em outras cidades do mundo. O que para muitos significava uma mobilização grupal efetiva, para outros não passava de um analgésico das massas, que acabaria por se normalizar e se apagar pouco a pouco.

Depois de alguns meses, começaram a sair vários artigos sobre lesões nos olhos dos manifestantes, provocadas pelas forças armadas. “Eu olhei para ele, que mirava o meu rosto”,¹ dizia uma reportagem do New York Times, trazendo o depoimento de um jovem chileno que havia perdido um de seus olhos por um tiro de bala de borracha. “Eu olhei para ele, que mirava o meu rosto” foi o título que também escolhi para a minha carta. Como imagem para ilustrar essa correspondência, pedi emprestada uma fotografia do artista romeno Ion Grigorescu (Bucareste, 1945), tirada durante os comícios eleitorais na Romênia, durante a ditadura de Ceausescu.

No Chile, em 2019, as forças de segurança dispararam contra os olhos dos manifestantes. O resultado foi um número histórico de perdas e destruições de olhos por uso de armas não letais: espingardas de chumbo, como parte de um protocolo que tinha sua origem nos treinamentos das milícias israelitas. As instituições haviam decidido, assim, arrancar literalmente os olhos dos cidadãos, e testar se, da penumbra, eles podiam se acostumar melhor à vigilância constante.

Num esforço por ilustrar estas agressões, escrevi uma carta repleta de referências, onde se entrecruzavam notícias tiradas de jornais atuais e as vozes das testemunhas, junto com figuras da literatura de ficção: Lina, protagonista do clássico conto do peruano Clemente Palma “Los ojos de Lina” (1901), que arranca os próprios olhos friamente para que seu amado não tivesse medo de olhá-la de frente; Olympia, a boneca de cera romântica do relato de E. T. A. Hoffman (1816), cujo olhar inerte estremecia os vivos; ou a santa de Siracusa, Lucia, que presenteou os próprios olhos a um amante de seu olhar, para que ele literalmente a deixasse em paz. Mulheres todas que mutilavam os próprios olhos para caminhar livres e à margem do olho masculino, que não se atrevia a olhá-las na cara.

A carta, a terminei em janeiro, e ficou esperando sua vez de ser publicada no mês de março. Apenas poucos meses depois, o governo chileno decretou novamente o toque de recolher, entre as dez da noite e as cinco da manhã em todo o território nacional, como parte de um novo pacote de medidas para tentar frear o contágio da Covid-19.

A situação de vigilância é novamente normalizada, aparentemente pelo bem de todos. As pessoas ficam em casa para evitar que os contágios continuem se propagando, desejando que isto termine, em meio a uma insidiosa incerteza. Na rua, nos olhamos de soslaio e sentimos uma repulsa incontrolável, evitando respirar o ar do vizinho. Recomenda-se que não digamos “distanciamento social”, e sim físico. A ideia é deixar de estar juntos por um período (indefinido) e reforçar os laços solidários que nos aproximem mutuamente. As ruas do Chile, e as de tantas outras cidades, estão agora em silêncio, esperando que chegue o dia seguinte para funcionar a meio vapor. Os que podem mergulham no mundo do trabalho remoto. Os que não podem se dar a esse luxo circulam esquivando-se uns dos outros. Pensamos que estamos em um estado diferente e qualquer tipo de normalidade agora nos parece suspeita. Rompeu-se o equilíbrio, aquele caminho reto do nosso lar aos nossos locais de trabalho. A “disciplina” da vigilância agora é mais evidente e, por um instante, nos dá a impressão de que, antes de que tudo isso ocorresse, éramos livres.

Em 1975, o artista romeno Ion Grigorescu saiu às ruas de Bucareste para fotografar os cidadãos que estavam nas ruas às centenas, exercendo, obedientes, sua adesão ao regime. Com sua câmera camuflada no quadril, Grigorescu tirava fotos cauteloso, identificando o cruzamento dos olhares dóceis e desconcertados da multidão com o olhar impiedoso dos membros da polícia secreta. Electoral meeting [Encontro eleitoral] (1975) é a única coisa que ainda mantenho daquela carta que, escrita há poucos meses, hoje me parece defasada.

Do olhar desafiador ao temeroso. Do fechamento voluntário dos olhos à mutilação proposital dos mesmos. Dos olhos perdidos aos que sabem muito bem a quem miram. Olhos que, das janelas, controlam quem está na rua. Olhos escondidos em nossos aparelhos celulares que indicam onde estamos para nos manter a salvo. Não importa se abrimos os olhos ou os mantemos fechados, o dia seguinte voltará a chegar. Ainda que agora pareça que o dia e a noite são apenas um mero truque de iluminação.

¹“Yo lo miré; él me apuntaba a la cara”. Depoimento de um manifestante registrado na reportagem “It’s mutilation. The police in Chile is blinding protesters”, realizada pelo New York Times. Brent McDonald, Miguel Tovar e Armando De La Cruz, 10 de novembro de 2019.

Imagem: Ion Grigorescu, Electoral Meeting [Encontro eleitoral], 1975. Cortesia do artista e de Gregor Podnar

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