A sobreposição ou até colisão de planos narrativos e registros distintos é frequente na escrita da atriz, dramaturga e diretora de cinema e teatro Grace Passô (1980, Belo Horizonte, MG). Na peça Vaga carne (2018), por exemplo, ela introduz uma voz que ocupa o corpo de uma mulher. A ideia da existência de um âmbito autônomo da voz e da fala, potencialmente independentes do corpo, é bastante natural no universo de Passô, que tanto em sua escrita quanto no momento da interpretação (ou, poderíamos dizer aqui, da performance), recorre por vezes a registros outros da linguagem, feitos de neologismos, sons, glossolalias e a repetição obsessiva de poucas palavras até descolá-las de seu significado convencional. A opção por uma metalinguagem, que se questiona ao mesmo tempo em que é construída, pode ser lida como uma das maneiras que Passô encontrou para lidar em sua prática com o desejo de se apropriar de mecanismos que quebram padrões da linguagem: “escrever o que você mesma vai falar é de uma potência gigantesca. E ser pessoa negra torna minha prática autoral um modo de existir mais próximo da liberdade ”, ela afirmou.
A convite de Ana Kiffer – curadora do enunciado que, na 34ª Bienal de São Paulo, examina a relação entre a ideia de “corte” nos textos do escritor, poeta, dramaturgo, ator e diretor teatral francês Antonin Artaud (1896-1948) e a Poética da relação, do escritor, poeta, filósofo e crítico literário martinicano Édouard Glissant (1928-2011) – Passô concebeu uma releitura da clássica peça radiofônica de Artaud, Pour en finir avec le jugement de dieu (1947) [Para acabar com o juízo de deus]. Apoiada no conceito de ficções sônicas desenvolvido pelo escritor britânico-ganense Kodwo Eshun, cuja obra também é rica em neologismos e caracterizada pela convivência de registros distintos na construção de um panorama musical afrofuturista, a peça é uma colaboração com o músico brasileiro Barulhista, com participações de Maurício Badé e Thelmo Cristovam, em que a voz de Passô faz “vibrar o futuro nesse texto antigo que sempre teve o futuro em si. É uma evocação de palavras resistentes à automação da sensibilidade. É um encontro entre aliens.”
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Caroline A. Jones, Eyesight Alone: Clement Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
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Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).